segunda-feira, 9 de abril de 2012

Imagine um mundo sem religiões

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Múcio é um homem velho, vivido, vívido e voraz quando o assunto é Deus. Ateu pacífico, destemido, provocador gentil, ele tem certeza absoluta: “acabe com o dinheiro e você assistirá ao fim de todas as religiões”. Como assim, Múcio?!
A conversa começou com José Saramago, escritor português recentemente ceifado da superfície do planeta, igualmente ateu e cheio de impaciência com a parcela crente da humanidade (e que deve corresponder à maioria). Polêmico, Saramago tornou-se uma criatura deveras distante da unanimidade entre leitores e críticos literários. Certamente, teve a sua literatura afetada (ou mesmo, superestimada) por causa das suas convicções políticas. Política e literatura: taí uma farofa indigesta.
Apesar da idade avançada e do câncer de próstata recentemente descoberto, Múcio não sucumbe à tentação da crença inabalável a um ser divino, no “apagar da luzes”, como ele mesmo gosta de dizer. Embora o médico tenha afirmado que ele morrerá de outra doença que não o câncer — pois se trata de um tumor minúsculo diagnosticado em fase muito precoce —, Múcio anda entregue às reflexões existencialistas. “Meus amigos e ex-colegas de trabalho já morreram, ou estão inválidos em suas cadeiras de roda sendo cuidados por terceiros. Eu continuo na ativa. Sendo assim, de hoje em diante, só vou fazer aquilo que tiver vontade. Por exemplo, enquanto houver juízo, não paro de trabalhar”, ele comenta.
Na semana passada, Múcio reviu o Agenor, um amigo de infância também sorteado com a mesma doença. O ambiente na sala de espera da clínica de radioterapia ficou deveras agitado, porque ambos não continham a animação do encontro, recordando episódios da juventude, listando os que já se escafederam ou se entrevaram, debulhando uma piada atrás da outra. Os demais pacientes assistiam à cena sem entender o por quê de tamanha animação.
Não custou muito, apareceu uma enfermeira — tão bonita quanto aquela do clássico cartaz — que colocou o dedo indicador em riste na frente do rosto pedindo silêncio, por favor, meus senhores. Os dois sorriram abafados até os olhos vazarem de tanta lágrima e a vermelhidão tomar conta das suas cabeças há muito desprovidas de cabelo.
Ao mesmo tempo em que ouço as anedotas que o Múcio conta, penso o que seria do mundo se não houvesse as religiões. Seria melhor ou pior do que vemos hoje? Seria mais pacífico? Haveria menos fome e injustiça social? Faço do meu octogenário amigo um guru, e ele não titubeia, garante: “seria bem melhor, pode ter certeza”.
A conversa com o velho Múcio conduz-me a um pingue-pongue mental não verbalizado, marcado pelo antagonismo. Penso naqueles que possuem uma fé irremovível, comovente, incondicional, criaturas devotas absolutamente comprometidas com as ações desenvolvidas pelas suas respectivas igrejas.
Penso nas campanhas solidárias, na arrecadação de alimentos, agasalhos, remédios e outros mantimentos. Penso na sopa comunitária que os voluntários da igreja do meu bairro servem aos moradores de rua da cidade (uma vergonha, um dos maiores descalabros sociais que se tem notícia, e que ninguém resolve).
Penso nos crentes fervorosos que percorrem os hospitais a fim de levarem algum lenitivo aos doentes graves, terminais, e aos seus parentes com a fé já miudinha, judiada, duvidosa. Penso também nas mulheres carpideiras que percorrem funerais de gente conhecida ou desconhecida, cantando hinos, encomendando almas, consolando os sobreviventes, garantindo que há sim um local bem melhor do que este aqui, a ser desfrutado na companhia do Pai, do Filho, e do Espírito Santo (o que afinal significa esta trinca?!), dos anjos, dos santos, e de todas as pessoas que a gente amava e que já desencarnaram. Ora, perante tamanha iniquidade no planeta, uma vala profunda, per si, já seria uma redoma pra lá de tranquila.
Penso nos auditórios, templos, galpões lotados com o povão, nos cultos, nas cerimônias das mais variadas agremiações religiosas, e de como um inestimável contingente de pessoas busca nestes lugares refúgio, combustível pra tocar a vida. Rezam alto, cantam, buscam convencer-se mutuamente que a fé vale a pena, e que é fundamental continuar acreditando.
Por outro lado, alicerçado na História da Humanidade, penso nas incontáveis vertentes religiosas, na intolerância mútua, nas barbaridades cometidas pelos homens em nome da divindade, desde as sociedades mais antigas, as tribos primitivas, até a atualidade, em que homens-bombas continuam explodindo qualquer tentativa de se compreender como seria este ser divino que referenda a morte de outrem. Matar é preciso, com toda a fé, em nome de Deus, amém.
Penso na Inquisição, no desserviço à ciência e ao intelecto humano, nas perseguições covardes, na manipulação da fé alheia, no massacre da liberdade de pensamento, nas fogueiras que queimaram bruxas, hereges, doentes mentais, homossexuais, gênios da ciência e demais seres ameaçadores, adversários da igreja.
Penso nos crápulas travestidos como líderes religiosos enveredados na pedofilia, uma das modalidades mais abomináveis de violência contra o ser humano.
Fantasio um mundo sem religiões, conforme propõem Múcio, Saramago, e John Lennon, na canção Imagine: “...imagine que não existam países, nada pelo que matar ou morrer, e nem religiões também...”. Religião é ferramenta de dominação ou controle? O mundo subsistiria, organizadamente, sem o pecado, o castigo, o medo, o inferno, e a certeza da vida eterna após um último suspiro?
Enquanto ouço meu adorável e senil amigo teorizar a respeito da vida e da morte, da crença e da descrença, da alma e da falta dela, viajo em meus pensamentos, traço paralelos, mas não chego a qualquer resposta, senão que já é tarde da noite e o meu corpo tem fome de pão. Se é assim com o corpo, imaginem só com o pensamento, ao que alguns preferem chamar alma, espírito, sopro, energia, cataplasma, fantasma, luz, etc...

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